Nos últimos quinze dias fomos surpreendidos com notícias de dois casos de violência envolvendo professores de escola pública. De um lado, a mídia noticiou com exaustão a prova de matemática aplicada por um professor de uma escola de um bairro da periferia da cidade de Santos, considerando-a como uma apologia ao crime. De outro, infelizmente, tomamos conhecimento sobre mais uma morte violenta de professor no entorno da escola. Ironicamente, o professor de matemática tentou de um modo solitário e infeliz trazer para o cotidiano da aprendizagem parte do contexto dos alunos. Se pesquisarmos as condições de vida do bairro em questão, veremos que, o narcotráfico está inserido na comunidade. Junto a isso, tragicamente, a professora assassinada era uma profissional da escola pública estadual Paulo Freire no município de Embu. Não sabemos se sua morte está relacionada com o trabalho pedagógico que desempenhava ou se foi decorrência de um fenômeno particular. O que se sabe é que a escola tem deixado de ser o lugar seguro e feliz propositado por Synders, Anísio Teixeira, Paulo Freire e tantos educadores comprometidos com as novas gerações e futuro do país. Ainda que, a morte da professora não tenha nenhum motivo pedagógico, é preocupante saber que a porta da escola foi o lugar escolhido para sua execução.
Em tese, hoje estamos mais próximos de Freire, porém a política educacional em vigência traz em si, de forma densa, as cores de John Dewey. Os sistemas de ensino buscam garantir igualdade de oportunidades para todos, tendo claro que o desempenho educativo é individual, assim o conceito de desigualdade escolar por dentro da máquina pública faz parte da política de educação vigente.
A superação desse quadro exige uma outra política. Não é possível projetar uma escola inclusiva sem pensá-la como espaço sociocultural imerso em categorias freirianas. A vida de Paulo Freire foi um canto em defesa do direito à educação. Para muitos, ele é o maior educador da historia do pensamento pedagógico brasileiro, sua pedagogia estava voltada para a vida e leitura do mundo vivido. Educação é possibilidade de transformação, é contato com a realidade social e sua problemática. Seu pensamento é marcado pela dialética e coletividade, por meio destas vivencias a alfabetização se faz com as palavras geradoras propiciadoras da leitura de mundo e por conseqüência, da descoberta da tarefa histórica de um tempo social. Desta consciência emerge a compreensão e definição de uma problemática humana a ser enfrentada e superada.
A professora Vera Candau em seus estudos sobre educação e direitos humanos, chama atenção para o fato de que há uma diferença entre conflito e violência. O primeiro é inerente ao processo de ensino-aprendizagem, uma vez que, sem o embate teórico entre professor/aluno, realizado pelo dialogo, respeito e crença no outro, o aluno não é capaz de repensar seu quadro de valores, validar o que é signficativo e discernir sobre o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso. O conflito pedagógico é um motivador de aprendizagem no ambiente escolar, já a violência é produto do dilaceramento do ser, da razão pela qual se constata a impossibilidade da pessoa vivenciar sua identidade e estabelecer relações com seu mundo simbólico.
A escola tal como conhecemos é feita com o desenvolvimento do capital cultural com vistas ao favorecimento das diversas aprendizagens, em especial as cognoscentes, tácitas e atitudinais. Sem elas, não há escola. Pierre Bourdieu, um importante sociólogo francês, morto no ano de 2002, nos anos sessenta a analisou como instituição burguesa, estruturada a partir do conceito de educação como violência simbólica, logo era espaço privilegiado de reprodução social, isto é; lugar de dominação de classe, de acumulo do capital cultural, lócus dos herdeiros da cultura geral. Com ele, aprendemos a proeminência do hábitus professoral como esquema mental que se repete a fim de sedimentar uma concepção. Quanto maior a aderência da ação pedagógica do professor ao trabalho pedagógico do sistema de ensino, maior será o habitus professoral e por conseqüência o sucesso da escola reprodutora burguesa. Ao analisar a escola como agencia cultural, Bourdieu nos mostra a importância da disciplina como elemento estruturante de aquisição do capital cultural na agência escola. Sem a apropriação dos estados de incorporação, objetividade e institucionalidade a aprendizagem não se opera, logo, fracassamos na efetivação de uma escola capaz de promover capital cultural. Se o corpo, a atenção, a energia muscular não estiverem voltados à aprendizagem, nada acontecerá. Para que retomemos a sala de aula como um espaço sagrado de convívio, de disposição para o outro e encontro com a cultura geral, é preciso mais do que o estado de incorporação. Freire trabalhava a alfabetização conscientizadora de seus alunos sempre em rodas de conversa ou círculos de cultura. Corpos dispostos para a aprendizagem dialética e os mais diversos insumos culturais favorecem a institucionalidade do conhecimento. Tenho me perguntado: Se Freire estivesse vivo que leitura de mundo faria da educação de nosso tempo? Que simbologia há no assassinato de uma professora diante da escola pública que o homenageia como seu patrono? Técnicos dos sistemas de ensino, profissionais de educação, sociedade brasileira, não devem tratar essa morte como mais um fato da violência nossa de cada dia. É preciso ouvir o que a realidade está nos dizendo.
Retomar os conceitos educacionais de gestão democrática por meio das vivências de, grêmios estudantis, festivais musicais, apresentação de teatros, palestras condizentes à problemática local, plano de carreira e piso salarial para os profissionais de educação, parceria da escola com as famílias, organizações não governamentais e todas as forças vivas da comunidade (dispostas à realização da ética de solidariedade) é um dos caminhos para o reencontro da escola contemporanea com o pensamento clássico de Synders, Freire e Gramsci. Esses sempre perseguiram a escola democrática com o efetivo direito à educação e não a escola violenta imersa na barbárie. Precisamos retomar o conceito de cientificidade e humanismo com alegria, satisfação e desejo da pessoa humana que se realiza ao se sentir capaz de vivenciar a cidadania no espaço escolar. Com Synders e Freire, essas trilhas percorrem o horizonte sociocultural: o mais difícil, mais tênue, e ao mesmo tempo, mais denso. Somente por essas trilhas poderemos enfrentar a violência escolar, constituindo uma escola humana e democrática, respeitosa aos direitos humanos, no que concerne ao encontro de pessoas e científica no que tange a sua relação com o conhecimento e a cidadania. Grande tarefa histórica temos a frente.
Cristiane Gandolfi, professora da Universidade Metodista de São Paulo.
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