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IDENTIDADE, MEMÓRIAS, CULTURA, DIVERSIDADE CULTURAL, DESIGUALDADES SOCIAIS...

quarta-feira, 30 de março de 2011

É PRECISO TRANSVER O MUNDO: O DISCURSO FORMAL COMO IMOBILIZADOR DA TRANSFORMAÇÃO DO REAL

Danilo Di Manno de Almeida

Edson Fasano

Maria Leila Alves

Resumo

No presente estudo investigamos a questão da formalização do discurso no âmbito escolar, em sua relação direta com as condições atuais da realidade brasileira. Iniciamos nossa investigação com a análise da problemática do filme Entre os muros da escola, dirigido por Laurent Cantet. Considerando as relações culturais e sociais conflituosas no referido filme, interessa-nos especificamente a retórica imaterial evidenciada nos atritos insuperáveis das partes envolvidas. Neste ponto, procuramos entender as implicações entre o desaparecimento da ação de sujeito histórico, reduzido a simples participante de seus processos, e uma prática pedagógica formal e burocrática que o educa ao longo de sua vida escolar. Em seguida, avançamos a discussão sobre a linguagem, destacando o processo alienante que ultrapassa o círculo escolar e nos remete a outros “muros invisíveis” constitutivos das relações humanas. Neste caso, evidencia-se no discurso vigente, um enfoque formal da cultura, uma retórica vazia, imaterial e imaterializante, que desenraiza as relações humanas de suas bases concretas. Predomina neste discurso um enfoque culturalista e social de situações institucionalmente constituídas. De que estratégias poder-se-ia lançar mão contra a formalização do discurso, na esfera da produção do conhecimento escolar? Que lições se podem tirar das relações didáticas, sociais, culturais e humanas, trazidas pelo filme? É possível transver a realidade dentro dos muros da escola? Como romper a invisibilidade dos muros? Que olhar seria preciso para enxergar o grande campo de invisibilidade dos múltiplos muros que nos ensinaram tal retórica e a formalidade? Como dizer outras palavras e encontrar outros sentidos?

Palavras Chave: educação escolar, estética, relações culturais, formalismo, currículo.

Introdução

“Entre os muros da escola”[1], filme premiado com a Palma de Ouro de 2008, é baseado no livro de François Bégaudeau que se passa em uma escola pública de ensino médio na periferia de Paris, freqüentada por adolescentes de diferentes origens étnicas e culturais: africanos, asiáticos latino-americanos e franceses.

            O que François relata em seu livro e interpreta no filme dirigido por Laurent Cantet[2], protagonizando François Marin, o professor da 7ª série encenada, é a sua própria experiência de professor de francês. 
            O filme apresenta-se como um documentário em que as cenas fluem com naturalidade com um elenco composto por alunos, pais e professores reais, todos eles não-atores[3]. O profissional que atua no filme, enfrentando o desafio de relacionar-se com um grupo de alunos culturalmente diferenciados, comete erros (como a maioria dos professores), se envolve emocionalmente, representando um personagem de “carne e osso”, o que permite aos educadores que assistem ao filme se reconhecer em uma série de situações inesperadas.

François e seus amigos professores se preparam para um novo ano de uma escola que fica em um bairro perigoso. Cheios de boas intenções, eles tentam evitar que o desânimo os impeçam de dar a melhor educação para seus estudantes. Culturas e atitudes diferentes se confrontam na sala de aula, um microcosmo da França contemporânea. Por mais que os estudantes sejam divertidos e inspiradores, o comportamento difícil deles põe em risco qualquer entusiasmo que o professor tenha por sua mal-remunerada profissão. François insiste em um ambiente de respeito e aplicação. Sem ser severo ou mal-humorado, a franqueza do professor surpreende os alunos. Mas sua ética na sala de aula é posta em teste quando os estudantes tentam desafiar seus métodos[4].

"Entre os Muros da Escola" expõe a visão francesa do choque de civilizações”. Edilson Saçashima, responsável pela redação da matéria consultada[5], assim se expressa sobre o filme:

A invasão da realidade no filme também se dá através do nome dos personagens, que é a mesma dos jovens na vida real. Porém, duas exceções merecem menção. Khoumba, vivida por Rachel Régulier, é uma aluna chamada de insolente por se recusar a atender uma ordem do professor. Souleymane, interpretado por Franck Keïta, é o garoto problemático que se indispõe com o professor e seus colegas. O filme reforça uma visão colonizadora a partir do ponto de vista de alguém que se toma, mesmo que inconscientemente, como a "civilização". Assim, o outro se torna o retrato da rebeldia e deve ser conquistado através da assimilação da cultura da "civilização".

            As relações em sala de aula evidenciam o fosso que separa o professor e os alunos que protagonizam o filme[6]. São as diferenças culturais e sociais que geram a incompreensão e os conflitos na relação pedagógica, em um retrato do que seria a França contemporânea, como afirmam alguns comentaristas? Ou estaria a própria relação pedagógica tão desgastada e desacreditada em seu formato de “educação bancária” que se tornou objeto de negação consciente ou inconsciente por parte dos alunos?
            Outras interpretações, como as que se seguem afirmam que
François pode ser visto como um educador, em um primeiro momento, mas também como uma espécie de colonizador. Sugerem que o sobrenome Marin, do professor, pode ser traduzido ao português como marinheiro, alguém que é desbravador dos mares e de novas terras. Seu esforço em fazer com que seus
alunos incorporem o idioma francês pode ser interpretado como uma espécie de "processo civilizador" imposto a esses alunos de diferentes etnias.

Os desencontros entre o que propõe o professor e o que esperam os alunos evidenciam conflitos aparentemente insuperáveis na forma de ler o mundo. O descompasso entre a proposta do currículo escolar e a frustração dos alunos frente ao mesmo gera entre os profissionais da escola uma troca de idéias conformistas nas reuniões de planejamento, nas conversas de corredores e mesmo nos organismos coletivos da escola. As ponderações que os educadores fazem sobre os alunos, no entanto, carecem de argumentação mais contundente, relacionada ao reconhecimento da forma inadequada de a escola fazer a mediação entre os alunos e o conhecimento. Uma leitura crítica dos procedimentos formais da pedagogia tradicional poderia colocar-lhes desafios teórico-práticos à altura das provocações dos alunos. Só dessa forma parece possível vencer o imobilismo alienante em que todos se encontram na escola.

É preciso ponderar também que apesar de as reações dos alunos serem de negação absoluta ao discurso formal da escola, a contestação que fazem a este discurso é disciplinada, como é disciplinada a reação que têm em relação às medidas punitivas. Mesmo a crítica à qualidade da escola no discurso dos pais é uma crítica comportada. Até mesmo a postura da mãe do aluno transferido por indisciplina, com toda a lucidez e dignidade no enfrentamento formal do conflito deixa transparecer a compreensão sobre a inflexibilidade e intransigência da instituição.

Não há espaço para a contestação por parte do alunado e de suas famílias; para uma negação mais radical de uma instituição escolar organizada (e revestida de mecanismos sociais que a convalidam) para transmitir a cultura oficializada pelo currículo, mesmo quando, como participantes da escola, não se reconhecem no bojo dessa cultura. Estamos ainda distantes de uma participação concreta da população na formulação do projeto de escola que deseja para seus filhos.

A escola aparece no discurso de um dos pais do filme, como a instituição que poderá definir do futuro de seus filhos e, por esse motivo, não se presta a ser contestada, mas sim a ser respeitada em sua poderosa institucionalidade. Assim, o que parece ingenuidade da população poderia ser considerado uma acomodação necessária. Se a diplomação é condição para o credenciamento social é preciso pagar o preço para consegui-la, por mais inusitado que isto possa parecer.

No caso brasileiro, em particular, em que pese o fato de os contextos educacionais poderem ser por nós, os submetidos, reconhecidos por sua impermeabilidade à qualquer cultura “nativa”[7] – nossos sistemas de ensino, desde sua origem, submeteram-se ao transplante de modelos, de início europeus, e posteriormente, norte-americanos, tendo inclusive a nossa história sido escrita e divulgada do ponto de vista do colonizador –, aceitamos o modelo de escolarização definida pelos dominantes, sendo poucas as vozes dissonantes em relação a essa questão.

Para Marin (2003), embora os conhecimentos do saber institucionalizado pela cultura dominante representem apenas uma pequena parcela do saber real, a escola desempenha um papel fundamental na negociação das identidades culturais uma vez que a riqueza dos saberes cotidianos foi excluída pelas instituições da cultura oficial impostas pelo ocidente no período de colonização européia. “Antes, la modernización y hoy en dia la globalización, imponen un ‘modelo de cultura única’, detrás de la cual, todos los pueblos deben alienarse, sin ningún respeto de la diversidad cultural” (p.15).

Continuando sua análise Marin lembra que o processo de globalização tendo, neste momento histórico, o protagonismo de dominação cultural imposto pelos Estados Unidos, “toca hoy en dia, las puertas y las plazas da Europa, en un viaje simbólico de regreso a las fuentes de la historia de la imposición en otros territorios y en otras épocas, de valores supuestos universales, originados in la misma Europa” (p. 23).

Considerando o fato de que os conteúdos culturais se transformam em mercadorias, o que significa “miles de años de diversidad cultural, que desaparecen en el bosque de supermercados” (p. 25), Marin denuncia e se opõe à uniformização da cultura do mesmo modo que denuncia e se opõe à destruição da natureza.

Apenas recentemente, após a emergência dos movimentos das minorias e da demanda das classes menos favorecidas pela participação, a questão de a escola ignorar a cultura dos alunos, como referência inicial para o desenvolvimento do ensino, vem sendo considerada como uma das causas do fracasso escolar. Esse estranhamento à cultura veiculada pela escola tem assumido formas escamoteadas de negação, como a indisciplina e outras formas de enfrentamento aos professores e demais funcionários. Não podemos nos esquecer também que os prédios escolares, por dentro e por fora têm sido alvo de depredações as mais destrutivas.

O que “Entre os muros da escola” traz de novo é exatamente a forma de enfrentamento assumida pelos alunos, que argumentam inteligentemente com o professor sobre a inadequação dos conteúdos curriculares para aquele grupo-classe, de tal forma que a lógica dos argumentos põe o professor em constante defensiva. As suas argumentações - em que pese o teor agressivo dirigido ao professor -, constituem-se em críticas irrefutáveis à cultura que a escola transmite e, inegavelmente, ao desencontro entre o que é tratado e o que se constitui em valores culturais para os alunos.

Só a força de uma cultura milenar como a que a escola abriga impede os professores de perceberem e assumirem uma postura mais sábia frente às críticas de que a escola é alvo.

Nesse sentido, tendo como pretexto o que se passa em “Entre os muros da escola” nos interessa discutir a retórica imaterial evidenciada nos atritos insuperáveis das partes envolvidas na sala de aula enfocada, procurando discutir as implicações entre o desaparecimento da ação de sujeito histórico - reduzido a simples participante de seus processos - e uma prática pedagógica formal e burocrática que o educa ao longo de sua vida escolar.

De outra parte, avançaremos nossa discussão sobre a linguagem, destacando o processo alienante que ultrapassa o círculo escolar e nos remete a outros “muros invisíveis” constitutivos das relações humanas.

Evidencia-se no discurso vigente, um enfoque formal da cultura, uma retórica vazia, imaterial e imaterializante, que desenraiza as relações humanas de suas bases concretas. Predomina neste discurso um enfoque culturalista e social de situações institucionalmente constituídas na escola e pela escola. De que estratégias poder-se-ia lançar mão contra a formalização do discurso, na esfera da produção do conhecimento escolar? Que lições se podem tirar das relações didáticas, sociais, culturais e humanas, trazidas pelo filme? É possível transver a realidade dentro dos muros da escola? Como romper a invisibilidade dos muros? Que olhar seria preciso para enxergar o grande campo de invisibilidade dos múltiplos muros que nos ensinaram tal retórica e tal formalidade? Como dizer outras palavras e encontrar outros sentidos?

O Espelho Trincado

O homem caracteriza-se como um ser histórico e conseqüentemente produtor de cultura. Embora condicionado por diferentes fatores decorrentes de sua historicidade e territorialidade, traz consigo um potencial transformador dos fatores condicionantes da sua existência física e cultural.

A educação tem sido uma das estratégias construídas pela humanidade para a garantia da sobrevivência humana em sua perpetuação física e espiritual. Nas diferentes organizações sociais não se prescindiu de processos educativos, no entanto os objetivos e formas de vivenciar tais processos variaram no tempo e no espaço.

Nas comunidades igualitárias, equivocadamente chamadas de comunidades primitivas, a educação se caracterizou por interesses comuns, expressa por uma concepção espontânea da organização social, em que as crianças e jovens educam-se pela tradição oral e pela observação dos mais velhos no enfrentamento dos problemas cotidianos e vivenciais. As crianças eram estimuladas à experiência e a vivência de aprendizagens decorrentes da mesma. Em razão da inexistência de hierarquização na divisão social do trabalho, bem como da inexistência da propriedade privada, não existia a necessidade do controle dos corpos e mentes.

A passagem das sociedades igualitárias para as sociedades hierarquizadas, marcadas pela divisão social do trabalho, pela propriedade privada, logo por classes sociais, apresentou profundas mudanças no processo educativo. O conceito de bem comum, da educação voltada para a vida, foi paulatinamente substituída por um processo opressor, voltado ao domínio da elite que se apropria dos frutos do trabalho.

O ideal pedagógico já não pode ser o mesmo para todos; não só as classes dominantes possuem ideais muito distintos dos da classe dominada, como ainda tentam fazer com que a massa laboriosa aceite essa desigualdade de educação como uma desigualdade imposta pela natureza das coisas, uma desigualdade, portanto, contra a qual seria loucura rebelar-se. ( PONCE, 2007, p. 36)

Como uma dimensão superestrutural, a educação assume um papel ideológico, objetivando a perpetuação da lógica social estabelecida, dessa forma, direciona seus programas e currículos para que a identidade da classe social/povos/culturas/etnias a eles submetidas seja destruída, procurando eliminar valores e tradições, ao mesmo tempo em que procuram construir o valor de universalidade para a sua própria cultura.

Consideramos emblemático pensar que durante a expansão do Império Romano, a partir do século IV, Roma estabeleceu como estratégia auxiliar de domínio o estabelecimento de escolas nos locais ocupados

Tão logo os exércitos romanos ocupavam um novo país, os retores instalavam as suas escolas junto às tendas dos soldados. O retor seguia as pegadas do general vitorioso, da mesma forma que o general seguia as pegadas dos comerciantes, e isso nas areias da África, quanto nas da Bretanha. Plutarco descreveu com que habilidade foi necessário servir-se da educação para habituar os espanhóis a viverem em paz com os romanos“ As armas não tinham conseguido submetê-los, a não ser parcialmente, foi a educação que os domou. (PONCE, 2007, p.80).

A ideologia da universalidade da cultura hegemônica presente na organização escolar, desde a Antiguidade, acompanhou os diferentes períodos da história, apesar das características diversas na organização do que denominamos escola.

A educação realizada nos Monastérios do mundo medieval, por exemplo, era destinada para dois grupos, para a formação dos monges e a que se destinava a plebe, importante destacar que a educação voltada à plebe não se referia a ensinar a ler e escrever, mas a divulgar as doutrinas cristãs, objetivando docilizar os corpos e mentes dos camponeses.

Observamos que desde o momento em que na Antiguidade a educação passou a ser exercida em locais específicos e por pessoas determinadas, o controle e a força passaram a fazer parte de sua metodologia e currículo.

A colonização européia, que submeteu grande parte dos povos do mundo, a partir do período moderno, como em Roma Antiga, foi acompanhada de um modelo educacional, centrado na imposição da cultura clássica européia, adaptada, é claro, aos interesses do Mercantilismo e da Igreja. Não podemos deixar de citar, que ao chegar ao Brasil, os portugueses vieram acompanhados dos jesuítas.

De fato, como interpretar os autores profanos, de modo que, mesmo continuando profanos, chegassem a ser sempre defensores de Cristo? O interesse da Companhia de Jesus era apoderar-se do ensino para pô-lo a serviço da Igreja, ainda que para isso fosse necessário realizar as mutilações mais grosseiras e interpretações mais ridículas... (PONCE, 2007, p.122)

A partir da intenção ideológica estabelecida, a construção do discurso acabava estruturando-se em sua forma e distanciando-se da essência e do conteúdo significativo, retirando do processo pedagógico seu potencial transformador.

Interessante pensar o processo educacional visto por parte das pessoas submetidas a ele. Como reagiram os espanhóis a educação romana? Como os camponeses experimentaram a educação do monastério? Como os ameríndios reagiram a educação jesuítica? Como os escravos, os servos, os operários se sentiram alijados dos processos escolares? A grande parte dos registros de tal processo foi realizada pelos dominadores, logo as resistências foram ignoradas ou consideradas como indisciplina, indolência, ignorância.

O modelo escolar burguês, presente no mundo contemporâneo, fruto da história de dominação e exploração da sociedade capitalista européia, centrou-se no princípio de dualidade educacional, voltada a reproduzir a divisão social. Aos trabalhadores uma educação voltada a perpetuação da sua força de trabalho e aos proprietários, ócio e uma educação “desinteressada”.

A imposição de um modelo educacional, voltado de forma arrogante, ao conceito de uma cultura hierarquicamente superior, objetivando a destruição do sentimento de pertencimento a determinado grupo, classe, etnia etc, caracterizou em diferentes momentos da história como modelo de dominação e busca de submissão entre os povos. Mas será característica da natureza humana a submissão? Não, a história tem nos demonstrado o contrário. Nas palavras de Paulo Freire, a vocação ontológica do ser humano é ser mais.

Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua vocação ontológica e histórica de ser mais. A reflexão e a ação se impõem , quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem. ( FREIRE, 2005, p.590).

Reagimos diante da nossa negação. Reagimos diante de um modelo educacional que tenta nos submeter. Resistimos à “imagem trincada do espelho[8]”.

O filme Entre os Muros da Escola, pode a princípio demonstrar certa estranheza por parte dos franceses a uma educação escolar a qual adolescentes, em sua grande maioria imigrante, reagem à “inclusão”. Mas a que inclusão? Um sentimento de falta de sentido, de não pertencimento ao chamado “Mundo Clássico”, ao qual desde o princípio, esses alunos, tiveram negado o direito de se envolver. No entanto, quase que magicamente lhes apresentam esse mundo de forma benevolente, tentando impô-lo como valor absoluto.

O massivo recebimento de imigrantes, especialmente nas duas últimas décadas, por parte dos países europeus, coloca em evidência uma realidade até então pouco imaginada, ou seja, a cultura eurocêntrica não se caracteriza como um valor universal. A miscigenação, a pluralidade cultural, vista até então com certa curiosidade antropológica, invade as cidades, os cantos, incomodando o espírito dominador.

Discute-se a necessidade de dialogar de forma multicultural, de forma polifônica, ou ainda poliglota, em decorrência das “novas relações mundiais” Novas para quem? Discussões presentes há muito tempo em territórios colonizados. De que forma pode-se caracterizar obras como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, escrita na década de 1930 do século passado, ou Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, escrito na década de 1940, se não como um esforço “interessado”[9] para compreender a realidade cultural multifacetada, mas que nem por isso deixava de marcar a nossa identidade?

Considerações finais

A formalização do discurso no âmbito escolar encenada em “Entre os muros da escola”, retrata uma realidade que identifica-se parcialmente à problemática geral vivida pela educação brasileira. De modo geral, os problemas sociais e culturais são obscurecidos na formalização discursiva presente na educação. O formalismo educacional centra-se em conteúdos definidos por um determinado grupo social, no caso brasileiro, inicialmente por europeus e, posteriormente, por norte-americanos. De tais conteúdos retira-se a historicidade e interesses que extrapolam os limites estabelecidos, apresentando esses conteúdos revestidos de neutralidade.

O espaço escolar torna-se um ambiente de “inserção” social, que deve se viabiliza pela absorção de conteúdos, por parte dos alunos. Em termos colocados por Paulo Freire: “Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou dissertação que implica um sujeito – o narrador – e objetos pacientes, ouvintes – os educandos” (2005, p.65).

O desconforto vivido no ambiente escolar pelo ambiente é partilhado por docentes, alunos, pessoal da gestão e da infra-estrutura escolar.

A partir de uma análise superficial, poderia se acreditar que o tormento dos professores (vide cenas do filme em que comentam a situação dos alunos) seria sanado se os alunos absorvessem os conteúdos e, conseqüentemente, assumissem a cultura da escola (quer dizer, a cultura que ignora outras culturas e outras problemáticas). É neste ponto que a realidade retratada no filme e a nossa são coincidentes: ambas adstritas à transmissão de conteúdos pelos conteúdos.

A formalização do discurso escolar se expressa pela incorporação curricular de conteúdos, ditos universais, e, simultaneamente, pela ignorância estrutural de qualquer outro contexto cultural e experiências cotidianas dos alunos. De onde resulta o fraco envolvimento dos alunos com o currículo oficial.

Do ponto de vista docente, o conteudismo escolar também tem pouco a ver com suas vidas. No entanto, a naturalização dos conteúdos e sua falsa associação com uma neutralidade científica, levam os docentes a realizar de maneira alienada suas atividades[10], vivendo por isso a dor e a desesperança.

A centralização nos conteúdos oficiais e a exclusão de qualquer outro conjunto de problemas (reduzindo o conhecimento à sua simples dimensão epistemológica) indicam o clima formal do ambiente escolar. Explicam também porque os muros escolares abrigam tantas tensões, não ditas, reprimidas, que tomam a forma de agressão mútua entres os que convivem nos seus limites. A redução dos vários problemas vividos, ocultados, combatidos na interação humana, se manifestam de forma contundente contra o reducionismo dessa complexidade a uma abordagem estritamente epistemológica.

Sem pretender fazer jogo de palavras, notamos que o estado bélico do convívio escolar está nesta dificuldade de equalizar problemas, isto é, de a escola contemplar as outras dimensões humanas (existenciais, políticas, econômicas, culturais, relacionais, interacionais etc.). O formalismo dos conteúdos se manifesta no formalismo da discussão (vide Entre os muros, que apresenta apenas algumas cenas de violência física) e no formalismo discursivo (no que coincide com a França) e também no embate físico entre corpos discentes, e, entre esses e os corpos docentes, no caso brasileiro, por exemplo.

Como vimos nas considerações históricas, a problemática dos conteúdos retratada em Entre os muros da escola tem profundas relações com a nossa, uma vez que a organização da escola brasileira é a reprodução do modelo escolar europeu centrado no conhecimento formal dos conteúdos. Implica nisto a imaterialidade da retórica da escolar. Uma retórica que não leva em conta a materialidade das culturas, dos conhecimentos, dos conflitos ali vividos. Ela se imaterializa na obsessão pela transmissão dos conteúdos e na produção da única problemática que considera importante abarcar, acolher, dar conta, avaliar, requerer e como vimos, acaba, por fim a esvaziar a própria virtualidade dos conteúdos.

Por essa ótica, os atritos tornam-se insuperáveis e tenderão mais e mais aos desencontros, desde que se continue a desconsiderar a cultura dos estudantes. O formalismo chega a tal ponto que atingimos mais do que um descolamento dos conteúdos curriculares de seu processo histórico e metodológico de construção. Atingimos algo ainda mais radical: trata-se da recusa da polis no interior da escola. Revela-se aí a ignorância cultural e política que representa o formalismo escolar.

Tal ignorância não só impede a formação de sujeitos históricos (tarefa que poderia ter sido assumida pela escola, apesar dos seus muros), como trabalha em direção ao desaparecimento dos sujeitos históricos que adentram as instituições de ensino. O estímulo ao esquecimento cultural, bem como às dimensões existenciais, aos problemas intransponíveis do cotidiano dos estudantes e também dos profissionais que atuam na instituição escolar, é mantido e insuflado pela opção exclusiva aos conteúdos. Poder-se-ia considerar nesses procedimentos formais a cumplicidade de uma opção política a uma estratégia metodológica alienada e alienante?

Contudo, não é somente a escola que procede desta maneira. Ela está implicada numa sociedade que se organiza hierarquicamente e estabelece táticas de “esquecimento” dos sujeitos históricos, construindo um discurso imobilizante. De “fora”, a escola não é recusada nem criticada politicamente. O que se critica nela diz respeito prioritariamente ao seu desempenho interno (níveis de ensino, ação docente, defasagem tecnológica, desconexão com a empregabilidade). A escola é criticada, vigiada, avaliada por meio de indicadores de eficiência. Entenda-se, de maneira formal e burocrática. As avaliações estão reduzidas à sua área de competência. Área esta que está definida como problemática de conteúdos formais. Desta maneira, numa circularidade viciosa, reforça-se a maneira como a escola se reduz a complexa problemática da existência humana a uma problemática conteudista. Em que muros – em que planícies – aprofundaríamos, discutiríamos, investigaríamos, conversaríamos sobre as outras problemáticas? Onde muralhar ou desmuralhar a vida, a felicidade, o prazer, a dimensão estética?

Que estratégias seriam necessárias para combater a formalização do discurso escolar? Anterior a esta questão não está aquela do esquecimento cultural produzido pelo formalismo conteudista? As estratégias não estão dormentes e a pulsação de seus embriões não seriam percebidos quando o tema do esquecimento cultural e do desaparecimento dos sujeitos históricos surgissem ruidosamente interferindo na transmissão inveterada de conteúdos?

A muralha formada pela contigüidade dos muros escolares e os de outras instituições, nem sempre visível, prolonga a nossa busca por estratégias e denuncia a nossa impotência. As estratégias se tornam paragens distantes. Justamente porque estamos habituados à cultura acadêmica intramuros e, muitas vezes, absorvidos pela crítica à escola e à sua missão social. Insolventes, sentimo-nos culpados por não encontrar saídas. Ocorre que para transver a realidade dentro dos muros da escola, temos que transver a escola nos colocando no interior de outros muros (instituições) e na amplidão da sociedade (com seus muros nem sempre visíveis). Veremos a insolvência de toda a sociedade e de todas as instituições. Ou nos esforçamos todos para superar o que nos diz respeito, ou não terá sentido atribuir apenas a algumas instituições a tarefa de encontrar estratégias para mudar o mundo.

Para encontrar outros sentidos e poder dizer outras palavras, teremos que quebrar os muros que nos envolvem. Rompendo as muralhas e criando espaços diversos para que, juntos, encontremos estratégias de transformação que estão para além dos entre muros da escola.

Referências Bibliográficas:

FREIRE, Paulo Pedagogia da esperança: um encontro com a pedagogia do oprimido. 9ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002

______________.Pedagogia do oprimido. 41 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

MARIN, J. Globalización, diversidad cultural y practica educativa. In: Revista Diálogo Educacional, PUC – Paraná, v.4, n. 8, Curitiba: Champagnat, 2003.

PONCE, Anibal. Educação e luta de classes. 22 ed. São Paulo: Cortez, 2007.

SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência científica. 10 ed. São Paulo: Cortez editora, 1991.



[1] No original francês o livro e o filme intitulam-se “Entre les murs”. Segundo comentários sobre o filme, encontrados em www.google.com.br, a menção à escola no título é uma inclusão da distribuidora do filme no Brasil.

[2] “Cantet já desenvolvia uma trama sobre o assunto quando resolveu integrá-la a uma adaptação livre do livro de Bégaudeau. Entenda-se como adaptar livremente fazer uma versão 2.0 do livro: reproduzir as mesmas questões numa sala de aula formada por alunos não atores (até então) e captar as reações. Ou seja, havia um roteiro, mas ele deixava um grande espaço para a improvisação. É justamente por se afastar dos modelos tradicionais de narrativa (seja no gênero ou fora dele) que o filme se torna tão interessante. À medida que quem assiste percebe essa liberdade (mesmo que vigiada de longe), ver o filme se torna uma experiência muito mais próxima da realidade, onde o imprevisto dita as regras.” In: www.interney/net/filmes, posted by Chico Fireman.

[3] Embora todos ali não sejam atores profissionais e sim pessoas comuns eles cumprem um roteiro. Não são e não agem daquele jeito. Puderam sim improvisar, mas nada que fugisse ao conceito inicial.

[4] Arquivos de abril a julho, in Formaçacineclub’s blog.

[5] In: cinema.uol.com.br/ult. not.

[6] A linguagem é o grande campo de batalha onde é travado esse conflito cultural. O filme se sustenta basicamente apenas com longos diálogos, e muitos deles trazem o frescor do improviso. Sem um roteiro em mãos, os jovens puderam criar seus próprios diálogos, o que dá a sensação de que a realidade daqueles garotos invadia a ficção de "Entre Muros". In: cinema.uol.com.br/ult.not.

[7]Desde a invasão européia no continente americano o povo nativo tem sido considerado corrompido e criador de culturas selvagens, Jose Marin, um antropólogo chileno, em seu estudo “Globalización, diversidad cultural y practica educativa” afirma:“Denigrar al oprimido será la regla fundamental en una escala de valores que pertenecen a la cultura dominante, estructurada a partir de la imposición de la universalidad de su civilización, considerada como la sola y única base para imaginar también un modelo único de visión del mundo, de sociedad, de economía de política e de cultura”. (2003, p.13).

[8] Utilizamos a expressão “imagem trincada do espelho” de forma figurativa para expressar a identidade negada dos sujeitos, por um conteúdo escolar descontextualizado.

[9] As obras científicas ou literárias são marcadas por diferentes interesses, são contextualizadas, não possuem neutralidade.

[10] A essência é um produto do modo pelo qual o homem produz sua própria existência. Quando o homem considera as manifestações de sua própria existência como algo desligado dela, ou seja, como algo independente do processo que as produziu, ele está vivendo no mundo da pseudo-concreticidade. Ele toma como essência aquilo que é apenas fenômeno, isto é, que é apenas a manifestação da essência..Ele toma por problema apenas o que é manifestação do problema (SAVIANI, 1991, p.21).

quarta-feira, 23 de março de 2011

Caminhos pedagógicos para a inclusão: vamos retirar as pedras?

Elizabete Cristina Costa Renders[1]

“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca mais me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra”.
(Carlos Drumond de Andrade)

A educação é um direito humano a ser garantido para todas as pessoas, portanto, não cabem processos de seleção que indiquem alunos aptos ou inaptos para a escolarização. Não cabem pedras no caminho pedagógico. Cabe, sim, à escola, iniciar o processo de construir-se com uma nova escola – uma escola de/para todas as pessoas. Para tal, será necessário valermo-nos de caminhos pedagógicos diferenciados, no sentido da promoção de um processo de construção do conhecimento acessível a todos os estudantes. Será necessário romper as barreiras que se colocam como pedras no caminho de estudantes e docentes.
Os caminhos pedagógicos nos remetem à imagem do pedagogo (mundo grego) que, na sua dinâmica, compõe-se dos atores (criança / acompanhante), do caminho (percurso) e da busca de um objetivo (a construção do conhecimento). Todavia, na perspectiva da inclusão, esta dinâmica considera a diversidade, valoriza as diferenças e, por conseguinte, converte o nosso olhar: atores são diferentes (docente, discente ou quem mais participe das relações inerentes aos caminhos educacionais), caminhos são diferentes (cada um faz o percurso a partir do seu jeito ser) e objetivos são diferentes (os saberes são diferentemente sábios). Mas se todos são diferentes, parece que a igualdade é inventada – será?!
Na perspectiva da professora MANTOAN, “diferença é o que existe, a igualdade é inventada”. Entendemos que a igualdade é inventada quando construímos um só jeito de caminhar e o impomos a todas as pessoas da sociedade ou a todos os estudantes presentes no sistema educacional (desde a educação infantil até o ensino superior). Passamos, então, a viver e alimentar uma ilusão: o caminho igual para todos os estudantes. E mais, a falácia torna-se uma determinação: os que não percorrem este caminho são incapazes de aprender. Daí a exclusão: tem aluno que consegue e tem aluno que não consegue aprender. Será?!
Especialmente no que toca à inclusão de pessoas com deficiência, somos desafiados a construir caminhos acessíveis (sejam físicos ou representativos), rompendo as barreiras (físicas, comunicacionais e atitudinais) já existentes e, conseqüentemente, “aprendendo a ser” uma escola inclusiva – construindo novos e diferentes caminhos que possam ser percorridos pelos diferentes estudantes. Trata-se da construção de uma cultura inclusiva na comunidade escolar.
           
Referência Bibliográfica:

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Uma escola de todos, para todos e com todos: o
mote da inclusão. Disponível em: <www.lite.unicamp.br / papet / 2002 / nt /
tal.5.htm>. Acesso em 20 de setembro de 2006.


[1]   Doutoranda em Educação pela UNICAMP, atua como  docente na FAHUD e como Assessora Pedagógica para a Inclusão na Universidade Metodista. Email: elizabete.costa@metodista.br.

segunda-feira, 21 de março de 2011

ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA ESCOLAR: TAREFA HISTÓRICA DE NOSSO TEMPO SOCIAL

Nos últimos quinze dias fomos surpreendidos com notícias de dois casos de violência  envolvendo professores de escola pública. De um lado, a mídia noticiou com exaustão a prova de matemática aplicada por um professor de uma escola de um bairro da periferia da cidade de Santos, considerando-a como uma apologia ao crime. De outro, infelizmente, tomamos conhecimento sobre mais uma morte violenta de professor no  entorno da escola. Ironicamente, o professor de matemática tentou de um modo solitário e infeliz trazer para o cotidiano da aprendizagem parte do contexto dos alunos. Se  pesquisarmos as condições de vida do bairro em questão, veremos que, o narcotráfico está inserido na comunidade. Junto a isso, tragicamente, a professora assassinada era uma profissional da escola pública estadual Paulo Freire no município de Embu. Não sabemos se sua morte está relacionada com o trabalho pedagógico que desempenhava ou se foi decorrência de um fenômeno particular. O que se sabe é que a escola tem deixado de ser o lugar seguro e feliz propositado por Synders, Anísio Teixeira, Paulo Freire e tantos educadores comprometidos com as novas gerações e futuro do país. Ainda que, a morte da professora não tenha nenhum motivo pedagógico, é preocupante saber que a porta da escola foi o  lugar escolhido  para sua execução.  
Em tese, hoje estamos mais próximos de Freire, porém a política educacional em vigência traz em si, de forma densa,  as cores de John Dewey. Os sistemas de ensino buscam garantir  igualdade de oportunidades para todos, tendo claro que o desempenho educativo é individual, assim o conceito de desigualdade escolar por dentro da máquina pública faz parte da política de educação vigente.
A superação desse quadro exige uma outra política.  Não é possível projetar uma escola inclusiva sem pensá-la como espaço sociocultural imerso em  categorias freirianas. A vida de Paulo Freire foi um canto em defesa do direito à educação. Para muitos, ele é o maior educador da historia do pensamento pedagógico brasileiro, sua pedagogia estava voltada para a vida e leitura do mundo vivido. Educação é possibilidade de transformação, é contato com a realidade social e sua problemática. Seu pensamento é marcado pela dialética e coletividade, por meio destas vivencias a alfabetização se faz com as palavras geradoras propiciadoras da leitura de mundo e por conseqüência, da descoberta da tarefa histórica de um tempo social. Desta consciência emerge a compreensão e definição de uma problemática humana a ser enfrentada e superada.  
A professora Vera Candau em seus estudos sobre educação e direitos humanos, chama atenção para o fato de que há uma diferença entre conflito e violência. O primeiro é inerente ao processo de ensino-aprendizagem, uma vez que, sem o embate teórico entre professor/aluno, realizado pelo dialogo, respeito e crença no outro, o aluno não é capaz de repensar seu quadro de valores, validar o que é signficativo e discernir sobre o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso. O conflito pedagógico é um motivador de aprendizagem no ambiente escolar,  já a violência é produto do dilaceramento do ser, da razão pela qual se constata a impossibilidade da pessoa vivenciar sua identidade e estabelecer relações com seu mundo simbólico.
A escola tal como conhecemos é feita com o desenvolvimento do capital cultural com vistas ao favorecimento das diversas aprendizagens, em especial as  cognoscentes, tácitas e  atitudinais. Sem elas, não há escola.  Pierre Bourdieu, um importante sociólogo francês, morto no ano de 2002, nos anos sessenta a analisou como instituição burguesa, estruturada a partir do conceito de educação como violência simbólica, logo era  espaço privilegiado de reprodução social, isto é; lugar de dominação de classe, de acumulo do capital cultural, lócus dos herdeiros da cultura geral. Com ele, aprendemos a proeminência do hábitus professoral como esquema mental que se repete a fim de sedimentar uma concepção. Quanto maior a aderência da ação pedagógica do professor ao trabalho pedagógico do sistema de ensino, maior será o habitus professoral e por conseqüência o sucesso da escola reprodutora burguesa. Ao analisar a escola como agencia cultural, Bourdieu nos mostra a importância da disciplina como elemento estruturante de aquisição do capital cultural na agência escola. Sem a apropriação dos estados de incorporação, objetividade e institucionalidade a aprendizagem não se opera, logo, fracassamos na efetivação de uma escola capaz de promover capital cultural.  Se o corpo, a atenção, a energia muscular não estiverem voltados à aprendizagem, nada acontecerá.  Para que retomemos a sala de aula como um espaço sagrado de convívio, de  disposição para o outro e encontro com a cultura geral, é preciso mais do que  o estado de incorporação. Freire trabalhava a alfabetização conscientizadora de seus alunos sempre em rodas de conversa ou círculos de cultura. Corpos dispostos para a aprendizagem dialética e os mais diversos insumos culturais favorecem a  institucionalidade do conhecimento. Tenho me perguntado: Se Freire estivesse vivo que leitura de mundo faria da educação de nosso tempo? Que simbologia há no assassinato de uma professora diante da escola pública que o homenageia como  seu patrono? Técnicos dos sistemas de ensino, profissionais de educação, sociedade brasileira, não devem tratar essa morte como mais um fato da violência nossa de cada dia. É preciso ouvir o que a realidade está nos dizendo.
Retomar os conceitos educacionais de gestão democrática por meio das vivências de, grêmios estudantis, festivais musicais, apresentação de teatros, palestras condizentes à problemática local, plano de carreira e piso salarial para os profissionais de educação, parceria da escola com as famílias, organizações não governamentais e todas as forças vivas da comunidade (dispostas à realização da ética de solidariedade)  é um dos caminhos para o reencontro da escola  contemporanea com o pensamento clássico de Synders, Freire e Gramsci.  Esses sempre perseguiram a escola democrática com  o efetivo direito à educação e não a escola violenta imersa na barbárie.  Precisamos retomar o conceito de cientificidade e  humanismo com alegria, satisfação e desejo da pessoa humana que se realiza ao se sentir capaz de vivenciar a cidadania  no espaço escolar. Com Synders e Freire, essas trilhas percorrem o horizonte sociocultural: o mais difícil, mais tênue, e ao mesmo tempo, mais denso. Somente por essas trilhas poderemos enfrentar a violência escolar, constituindo uma escola humana e democrática, respeitosa aos direitos humanos, no que concerne ao encontro de pessoas e científica no que tange a sua relação com o conhecimento e a cidadania. Grande tarefa histórica temos a frente.
                                                                                            
Cristiane Gandolfi, professora da Universidade Metodista de São Paulo.

DE FRENTE COM A DIVERSIDADE EM SALA DE AULA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A INCLUSÃO EDUCACIONAL

Maria José Oliveira Russo[1]


A inclusão de alunos com necessidades educativas especiais emerge de um processo que, ao longo dos anos, vem – fomentado e amparado por leis – sendo reconhecido mundialmente, no sentido de possibilitar o acesso desses alunos em ensino regular. Vale salientar que  por necessidades educativas especiais, devemos entender: alunos com problemas de aprendizagem; alunos com deficiência: mental, sensorial  e física (com alto, médio e leve grau de comprometimento ou com deficiências associadas); alunos com comportamentos atípicos e alunos com altas habilidades.
Observamos que a inclusão enfrenta por um lado, entraves, desafios e resistência por parte daqueles que se sustentam no paradigma educacional da homogeneidade de classes. Por outro lado, tem encontrado o apoio de uma ação coletiva, fundamentada em princípios constitucionais, que preconiza o oferecimento de uma escola de qualidade onde todos possam estar inseridos independente de seus atributos pessoais. A partir da década de 90,  muito se tem falado a respeito e muitos caminhos já foram percorridos. No Brasil esse movimento tem se arraigado fortemente nos últimos anos.
Devemos ter em mente que esse processo não pode e nem deve ser solitário. Portanto, há que nos remetermos a uma ação coletiva de organizações educacionais, fundamentadas em princípios constitucionais e concepções humanísticas, que possibilitem a inserção de todos os alunos em ensino regular, desde que respeitada a diretriz qualidade de ensino, conforme determina a lei. Faz-se necessário mencionar também as condições imprescindíveis de acessibilidade, quanto à adequação do espaço físico e os recursos didáticos que possibilitem tanto a prática docente, quanto  a aprendizagem desses alunos visando suas possibilidades, habilidades e expectativas. Entretanto, ainda observamos com frequência muitas formas de discriminação. Uma delas é a aceitação das diferenças sem compromisso. Aceitar, por exemplo, o aluno com deficiência na classe comum, sem valorizar suas potencialidades (certamente ele as possui) e sem comprometimento com sua aprendizagem, é discriminá-lo. E isto  é incluir, excluindo.
Ao considerarmos todos esses pressupostos, não podemos pensar a inclusão apenas sob o ponto de vista da legalidade, nem tampouco permitir que recaia sobre o professor a responsabilidade pela aprendizagem do aluno que se encontra em “situação de inclusão”.
É de extrema importância nos acautelarmos ao colocar em prática uma ação inclusiva que requer, entre outros aspectos, a superação das relações educacionais presentes na atual estrutura escolar seriada do ensino regular. A construção de uma escola inclusiva preconiza a formulação de respostas à diversidade, o entendimento desta como oportunidade de enriquecimento das trocas no âmbito pessoal, social e no processo de ensino-aprendizagem; a elaboração de projetos que incorporem a convivência e a relação entre as diferenças; propostas que abranjam todos os aspectos do currículo para que este seja amplo, equilibrado, flexível e aberto. Isto pressupõe uma avaliação das reais condições que possibilitem uma inclusão gradativa, contínua e planejada.
Considerando a importância da cautela, dos critérios e da seriedade que o processo inclusivo demanda, devemos nos ater a todos os aspectos que implicam na sua efetivação. Do contrário, o que encontraremos serão ações desordenadas, que com o tempo podem culminar em retrocesso em termos de ganho, em tudo o que já foi conquistado. Frente a essas concepções é imprescindível fazer um acompanhamento do professor que possui alunos em situação de inclusão, para ouvir suas dúvidas, seus receios, seus conflitos, conhecer sua prática, seu cotidiano. Observar como ele é orientado diante da diversidade dos alunos, investigar se existe uma equipe especializada, na escola ou itinerante, que lhe dê apoio, verificar sua participação na elaboração do planejamento, currículo e avaliação desses alunos, e ainda, sua participação em grupos de estudo ou cursos de aperfeiçoamento teórico e didático etc.
Devemos lutar por uma escola democrática que possa receber a todos, indistintamente. No entanto, não podemos nos deixar levar simplesmente por exigências legais ou por políticas educacionais que determinam a inclusão de forma indiscriminada. Temos que incluir sim, mas com a devida precaução, para que não corramos o risco de retroceder em um processo (que levou tanto tempo para se estruturar), e dessa forma, perpetuar a desigualdade.
O momento é de transição, de ruptura com o sistema educacional que não se propuser ao acolhimento das diferenças. Precisamos urgentemente,  desenvolver ações inclusivas eficazes, principalmente se considerarmos que vivemos em um país, onde a diversidade e a exclusão, são ainda, infelizmente, fatores marcantes em nossa sociedade.


[1] Pedagoga, Especialista em Educação Especial e Inclusiva e Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo.